quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tem que ser assim ?


Rafael* (9 anos) entra na sala e ao ver o desenho (o pequeno) me pergunta o que é.

Respondo com muita segurança que é um dragão e ele me pergunta como eu sei.

Respondo que para mim é muito claro:--- Olha o rabo, acho que só dragão tem esse rabo.

Rafael percebeu que estava diante de uma pessoa com facilidade para entender desenhos e se arriscou dizendo que também ia desenhar o seu dragão. E desenhou (o maior).Ao terminar, propus que se afastasse um pouco para olhar e perguntei se ele sabia que sabia desenhar um dragão daqueles. Respondeu satisfeito dizendo:----Eu não sabia que sabia! E completou:---Agora os meninos lá na escola não vão mais me zoar que eu não sei desenhar.

Essa situação me levou a reflexões, a questões para muitas das quais não tenho resposta.

Que criança “zoa” uns com os outros, todos sabemos; não é de hoje.

O episódio me chama a atenção por alguns aspectos: o conteúdo do que é “zoado”: qualidade do desenho, e o transtorno que provocara em Rafael; a ponto de ter parado de desenhar até aquele dia.

Imagine-se um grupo de crianças de 9 anos que avaliam desenhos uns dos outros. Para isso, precisam olhar o que os outros estão desenhando. Determinam então se é bom ou não e se não, o seu autor é vítima de gozação e rechaço. Qual será o padrão que usam para avaliar desenhos, tão difícil, essencialmente pessoal e subjetivo.

Como uma atividade que deveria ser autônoma, pessoal e sem padrões pode ser assim comparada? Buscam padrões prematuros para o desenho. Provavelmente aquele baseado no real, isto é, quanto mais parecido com o real melhor o desenho. É certo que nesta idade, ao desenhar tentam representar o real,mas como representação pode deixar um espaço para a criatividade, para o pessoal.

Os que “zoaram” ou “zoavam” estão desde já atrelados à prática de avaliar o outro, de compará-lo a um padrão, além de terem eles próprios uma precoce necessidade de padrões.

O que foi “zoado” vinha se submetendo ao padrão definido pelo grupo, foi discriminado pela crítica, deve ter se sentido ameaçado de exclusão e como defesa parou de desenhar. Parou de exercer espontaneamente uma atividade tão prazeirosa e importante como desenhar para crianças .Nesse dia se libertou, não porque já não se submete ao padrão do grupo mas porque descobriu que sabe desenhar. Podia não ter descoberto, seria uma faceta sem espontaneidade dentro de si ...

Isso acontece porque essas crianças vivem em um mundo assim e incorporam desde cedo valores, tais como: precisamos estar no padrão ou "acima" dele.

E padrão existe para tudo: para estética do corpo, para carreira e profissões, para o desempenho em geral...

Como conviver com as diferenças sem discriminá- las em um mundo tão cheio de padrões ?

Como estimular o esforço pessoal sem aprisionar as crianças em padrões?

Tem que ser assim?

Não posso ser diferente?

Nem o meu dragão?

*Nome fictício

3 comentários:

  1. Acho que vc levantou uma questão importante e complicada.Serve tb para adultos:como respeitar o idioma pessoal e auxiliar a pessoa a não ficar submetida aesse"mundo tão cheio de padrões"?Como estar junto sem reproduzir os valores dominantes?Ultrapassa a questão terapêutica,já é uma questão ética.

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  2. É tia Maú,concordo com a fátima aqui, é uma questão importante e interessante.
    Como essa padronizaçao hoje em dia afeta a todos nós, e nao poderia ser diferente, uma vez q as crianças,principalmente, se orientam pela comparaçao né, e ser diferente automaticamente as excluem do grupo de amigos..e que criança quer ser excluida? enfim, creio q este quadro só seria revertido se fosse cultuado a diferença como algo positivo, e nao pejorativo.

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  3. Maria Ruth, bela questão você colocou. Ela afeta adultos e crianças, em geral. Será, penso, que não se trata da repressão natural que qualquer grupo impõe a qualquer indivíduo? E mais, será que não é um reflexo dos adultos e sua escolhas, por ação e/ou omissão?
    Parabéns pelo blog.
    Marcelo Moscogliato

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